terça-feira, 2 de outubro de 2012


 

BIOÉTICA e BIODIREITO
            O direito sempre correu atrás da realidade.  
            Com muita frequência as situações acontecem, os problemas surgem e só muito tempo depois é que são normatizados na esfera jurídica.
 
            E não é preciso ir muito longe para lembrarmos de inúmeras questões  que suscitaram discussões e debates jurídicos, e, não raro, as primeiras sentenças proferidas a respeito desses temas polêmicos foram alvo de críticas, em que aplausos e contrariedades seguiram se digladiando na arena do desconhecimento e da ausência de normatização.
            É que, no mais das vezes, o Direito demora a se adaptar aos novos fatos e descobertas, de forma que os julgadores são frequentemente confrontados com situações novas, que têm que decidir sem específico suporte legal anterior.
 
            O bebê de proveta, a clonagem, a fecundação in vitro, a eutanásia, o aborto, a inseminação artificial e as células-tronco são exemplos de situações que surgiram e geraram polêmica antes de existirem normas para equalizá-las.
            Mas os exemplos não param por aí. Em outra vertente, o casamento homossexual e direitos matrimoniais, adoção por pais do mesmo sexo, registro de filhos por dois pais ou duas mães, mães de aluguel,  discriminação,  e muitos outros temas que ganharam destaque na mídia, são exemplos concretos dessas situações que se apresentaram ao longo do tempo.
 
            Em sede de Direito do Trabalho, a situação do portador do vírus HIV e o teletrabalho são,  também,  exemplos de inúmeras outras discussões que surgiram antes da normatização.
            Não são recentes, entrementes, os dilemas éticos que se desenharam nas páginas em branco dessa dicotomia evolução/ética.
 
            Hoje, no entanto,  quando o acelerado avanço da tecnociência imprime, a cada instante,  novas feições e matizes na vida em sociedade,  grita mais alto a necessidade de uma disciplina que possa, senão equacionar, pelo menos acompanhar de forma mais dinâmica essas questões éticas que,  entre a vida e as inovações tecnocientíficas, projetam  uma nesga jurídica que reclama desenvolvimento célere, para o preenchimento séptico dos  hiatos e lacunas.
            Nessa direção  uma nova disciplina  se destaca: a bioética.
 
            O termo não é novo. Trata-se de um neologismo criado pelo alemão Fritz Jahr, em 1927, numa publicação intitulada “Bio-Ethik. Eine Umschau über die ethischen Beziehungen des Menschen zu Tier und Pflanze’”, referido como um campo disciplinar oriundo dos conflitos existentes na área da saúde com a ética, que sempre existiram na história da humanidade.
            O mesmo termo também foi mencionado em 1971, no Livro denominado “Bioética: Ponte para o Futuro”, de autoria do americano Van R. Potter.
 
            Na origem, o termo apontava para o liame  desenvolvimento científico  e suas implicações éticas. Um viés moral-humanístico abria uma brecha entre ambos,  insinuando-se como esboço de uma nova disciplina.
            Suas diretrizes filosóficas começaram a se enraizar após o holocausto, na Segunda Guerra Mundial, quando todo o ocidente se chocou com as absurdas práticas médicas nazistas, friamente concretizadas em nome de uma ciência canhestra e cruel.  

            A lembrança das atrocidades cometidas em nome da eugenia e da depuração da raça ariana, exacerbou a percepção de que qualquer progresso na ciência ou na tecnologia só pode ser concebido quando não se sobrepõe aos direitos da vida, da dignidade e da honra.
            As descobertas e a evolução tecnocientífica têm seus limites estancados nos direitos da vida e não podem ficar sujeitos a quaisquer  tipos de interesse desvinculados desses parâmetros.
            Em sentido etimológico, bio + etica parecem, inequivocamente, referir-se à ética aplicada à vida e aos seres vivos.  Assim a bioética começou a despertar grande interesse na direção de imprimir uma nova regulamentação às práticas biomédicas.
            Transcendendo,  porém, do restrito alcance inicialmente sugerido, a bioética vem promovendo, paulatinamente, uma verdadeira revolução cutural, na medida em que o ilimitado e acelerado alargamento do conhecimento cientifico e tecnológico vem suscitando discussões acaloradas sobre valores éticos, enquanto seu espectro temático se alarga em diversas direções., caracterizando-a como uma ciência interdisciplinar, que discute a vida e os direitos dos seres viventes, numa linha que perpassa pela ciência, pela tecnologia, pela moral, pela ética, pela deontologia, psicologia, filosofia, sociologia, biologia, medicina  e, sobretudo, pelo Direito, já que estamos falando de um ramo do conhecimento voltado para as implicações ético-morais decorrentes das descobertas tecnológicas.
            É por isso que os organismos internacionais  de países desenvolvidos estão já há bastante tempo elaborando normas éticas, como  diretrizes para orientação da pesquisa científica. Exemplos são a Declaração Universal do Genoma Humano, de 1997, e a Conferência Geral da UNESCO que adotou, em 2005, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, consolidando princípios fundamentais dessa nova disciplina, que possa servir de ponto de partida para a implementação de legislações nacionais.
            A bioética, portanto,  evoluiu na necessidade de se equacionarem os dilemas éticos que vêm afligindo as pessoas e, por isso, não é possível pensá-la sem relacioná-la intimamente com o Direito.   É que essa disciplina é despida de coerção, do que decorre a indiscutível necessidade de uma significativa intervenção do Direito, com o objetivo de regulação de condutas.
            Em face dessa nova necessidade, já começa a ganhar vulto uma disciplina que se cogita chamar-se de Biodireito, e que consiste numa implicação teórica da Bioética na Teoria do Direito.
            Há inúmeras situações que não deixam dúvida quanto à necessidade de uma normatização efetiva a respeito. A reprodução assistida que implica na manipulação do momento para início de uma vida e o descarte de embriões congelados, ou o transplante de órgãos vitais em confronto com a definição do fator morte encefálica dos doadores, ou ainda as implicações decorrentes da incerteza e dos possíveis riscos relativos aos alimentos transgênicos  e seus efeitos colaterais no meio ambiente, são típicos exemplos de situações que não podem prescindir não só de uma intervenção bioética, mas, sobretudo da normatização do biodireito.
           A Constituição brasileira assegura, em inúmeros artigos, a proteção ao ser humano, seja quanto à dignidiade, seja quanto à vida e à saúde, à maternidade ou à infância, garantindo, ao menos em tese, igualdade, liberdade, segurança e condições dignas de sobrevivência, além de visar, ainda, a proteção ao patrimônio genético da humanidade, garantia de gerações futura
            Esses preceitos erigidos ao nível constitucional são os pontos de partida para a elaboração das leis bioéticas ou do denominado Biodireito, que, é importante notar, representa um revolucionário novo ramo do Direito, com repercussão mundial, que, certamente, já reclama uma evolução dinâmica e atualizada com a cadência dos avanços cientifico-tecnológicos.
            Nos países anglo-saxões em que predomina a Common Law,  há mais dinamismo no regramento. É que sentenças proferidas em casos particulares podem servir de fonte e base para outros julgamentos,  formando-se rapidamente um direito que é baseado na jurisprudência.
            No Brasil, contudo, em que predomina a forma escrita, a elaboração de novas leis demanda todo um longo e demorado processo burocrático que, certamente, se mostra muito mais estático e demorado, completamente divorciado  do ritmo dos tempos e da evolução tecnocientífica.
            Por outro lado, o avanço da ciência e da tecnologia não pode ser contido por meros preconceitos sociais ou religiosos, no mais das vezes tendo como suporte grandes interesses sociais. Muito menos pode invadir a esfera da dignidade e da vida, que se encontra protegida pela Lei Maior e é referido em inúmeras legislações.
            Desbordando, também, dos limites geográficos, num momento existencial em que a globalização traz à evidência a universalidade do existir, torna-se notório que a bioética também não pode deixar de lançar um cuidadoso e profundo olhar, mesmo que respeitando a diversidade cultural que defende razões e determina condutas, sobre práticas que parecem afrontar à própria evolução da vida, como a mutilação genital feminina, a própria pena de morte, ou o decepamento de órgãos, práticas, enfim, que,  como verdadeiras obscenidades, parecem ferir de morte os mais comezinhos princípios de direito.
            É preciso que estejamos atentos pois há questões inadiáveis reclamando concreção programática. Há princípios inabaláveis que estão sendo confrontados com  incisivas inovações, com repercussão nos âmbitos administrativo, legislativo e judicial.
            E é nessa seara que se impõe o instigante desafio de nos enveredarmos por esse corte transversal do BIODIREITO, de molde a serem consolidadas urgentes balizas legais a estabelecerem um liame entre as tecnociências e as responsabilidades e garantias  dos seres vivos e do ecossistema.
            E todos somos responsáveis, pois, como refletiu John Donne, poeta inglês do século XVI, destacado no livro de Ernest Hemingway “Por quem os sinos dobram”  “A morte de qualquer homem me diminui, porque eu sou parte da humanidade.; e por isso, nunca procure saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti.” 

                                                           Linda Brandão Dias

                                                                  03/10/2012

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