BIOÉTICA e
BIODIREITO
O
direito sempre correu atrás da realidade.
Com
muita frequência as situações acontecem, os problemas surgem e só muito tempo
depois é que são normatizados na esfera jurídica.
E
não é preciso ir muito longe para lembrarmos de inúmeras questões que suscitaram discussões e debates jurídicos,
e, não raro, as primeiras sentenças proferidas a respeito desses temas
polêmicos foram alvo de críticas, em que aplausos e contrariedades seguiram se
digladiando na arena do desconhecimento e da ausência de normatização.
É
que, no mais das vezes, o Direito demora a se adaptar aos novos fatos e
descobertas, de forma que os julgadores são frequentemente confrontados com
situações novas, que têm que decidir sem específico suporte legal anterior.
O
bebê de proveta, a clonagem, a fecundação in
vitro, a eutanásia, o aborto, a inseminação artificial e as células-tronco
são exemplos de situações que surgiram e geraram polêmica antes de existirem normas
para equalizá-las.
Mas
os exemplos não param por aí. Em outra vertente, o casamento homossexual e
direitos matrimoniais, adoção por pais do mesmo sexo, registro de filhos por
dois pais ou duas mães, mães de aluguel,
discriminação, e muitos outros temas
que ganharam destaque na mídia, são exemplos concretos dessas situações que se
apresentaram ao longo do tempo.
Em
sede de Direito do Trabalho, a situação do portador do vírus HIV e o
teletrabalho são, também, exemplos de inúmeras outras discussões que surgiram
antes da normatização.
Não
são recentes, entrementes, os dilemas éticos que se desenharam nas páginas em
branco dessa dicotomia evolução/ética.
Hoje,
no entanto, quando o acelerado avanço da
tecnociência imprime, a cada instante, novas feições e matizes na vida em sociedade, grita mais alto a necessidade de uma
disciplina que possa, senão equacionar, pelo menos acompanhar de forma mais
dinâmica essas questões éticas que, entre
a vida e as inovações tecnocientíficas, projetam uma nesga jurídica que reclama desenvolvimento
célere, para o preenchimento séptico dos hiatos e lacunas.
Nessa
direção uma nova disciplina se destaca: a bioética.
O
termo não é novo. Trata-se de um neologismo criado pelo alemão Fritz Jahr, em
1927, numa publicação intitulada “Bio-Ethik. Eine Umschau über die ethischen Beziehungen des Menschen
zu Tier und Pflanze’”, referido
como um campo disciplinar oriundo dos conflitos existentes na área da saúde com
a ética, que sempre existiram na história da humanidade.
O mesmo termo também
foi mencionado em 1971, no Livro denominado “Bioética: Ponte para o Futuro”, de
autoria do americano Van R. Potter.
Na origem, o termo
apontava para o liame desenvolvimento
científico e suas implicações éticas. Um
viés moral-humanístico abria uma brecha entre ambos, insinuando-se como esboço de uma nova
disciplina.
Suas diretrizes
filosóficas começaram a se enraizar após o holocausto, na Segunda Guerra
Mundial, quando todo o ocidente se chocou com as absurdas práticas médicas nazistas,
friamente concretizadas em nome de uma ciência canhestra e cruel.
A lembrança das
atrocidades cometidas em nome da eugenia e da depuração da raça ariana,
exacerbou a percepção de que qualquer progresso na ciência ou na tecnologia só pode
ser concebido quando não se sobrepõe aos direitos da vida, da dignidade e da
honra.
As descobertas e a
evolução tecnocientífica têm seus limites estancados nos direitos da vida e não
podem ficar sujeitos a quaisquer tipos
de interesse desvinculados desses parâmetros.
Em sentido
etimológico, bio + etica parecem, inequivocamente, referir-se à ética aplicada
à vida e aos seres vivos. Assim a
bioética começou a despertar grande interesse na direção de imprimir uma nova
regulamentação às práticas biomédicas.
Transcendendo,
porém, do restrito alcance inicialmente sugerido,
a bioética vem promovendo, paulatinamente, uma verdadeira revolução cutural, na
medida em que o ilimitado e acelerado alargamento do conhecimento cientifico e
tecnológico vem suscitando discussões acaloradas sobre valores éticos, enquanto
seu espectro temático se alarga em diversas direções., caracterizando-a como
uma ciência interdisciplinar,
que discute a vida e os direitos dos seres viventes, numa linha que perpassa
pela ciência, pela tecnologia, pela moral, pela ética, pela deontologia,
psicologia, filosofia, sociologia, biologia, medicina e, sobretudo, pelo Direito, já que estamos
falando de um ramo do conhecimento voltado para as implicações ético-morais
decorrentes das descobertas tecnológicas.
É por isso que os
organismos internacionais de países
desenvolvidos estão já há bastante tempo elaborando normas éticas, como diretrizes para orientação da pesquisa
científica. Exemplos são a Declaração Universal do Genoma Humano, de 1997, e a
Conferência Geral da UNESCO que adotou, em 2005, a Declaração Universal sobre
Bioética e Direitos Humanos, consolidando princípios fundamentais dessa nova
disciplina, que possa servir de ponto de partida para a implementação de
legislações nacionais.
A bioética,
portanto, evoluiu na necessidade de se
equacionarem os dilemas éticos que vêm afligindo as pessoas e, por isso, não é
possível pensá-la sem relacioná-la intimamente com o Direito. É que essa disciplina é despida de coerção, do que decorre a indiscutível
necessidade de uma significativa intervenção do Direito, com o objetivo de
regulação de condutas.
Em face dessa nova necessidade, já começa a ganhar vulto
uma disciplina que se cogita chamar-se de Biodireito,
e que consiste numa implicação teórica da Bioética na Teoria do Direito.
Há inúmeras situações
que não deixam dúvida quanto à necessidade de uma normatização efetiva a
respeito. A reprodução assistida que implica na manipulação do momento para
início de uma vida e o descarte de embriões congelados, ou o transplante de
órgãos vitais em confronto com a definição do fator morte encefálica dos
doadores, ou ainda as implicações decorrentes da incerteza e dos possíveis
riscos relativos aos alimentos transgênicos
e seus efeitos colaterais no meio ambiente, são típicos exemplos de
situações que não podem prescindir não só de uma intervenção bioética, mas,
sobretudo da normatização do biodireito.
A Constituição brasileira assegura, em inúmeros artigos, a proteção ao ser humano, seja quanto à dignidiade, seja quanto à vida e à saúde, à maternidade ou à infância, garantindo, ao menos em tese, igualdade, liberdade, segurança e condições dignas de sobrevivência, além de visar, ainda, a proteção ao patrimônio genético da humanidade, garantia de gerações futura
Esses
preceitos erigidos ao nível constitucional são os pontos de partida para a
elaboração das leis bioéticas ou do denominado Biodireito, que, é importante
notar, representa um revolucionário novo ramo do Direito, com repercussão
mundial, que, certamente, já reclama uma evolução dinâmica e atualizada com a cadência
dos avanços cientifico-tecnológicos.
Nos
países anglo-saxões em que predomina a Common Law, há mais dinamismo no regramento. É que
sentenças proferidas em casos particulares podem servir de fonte e base para
outros julgamentos, formando-se rapidamente
um direito que é baseado na jurisprudência.
No
Brasil, contudo, em que predomina a forma escrita, a elaboração de novas leis
demanda todo um longo e demorado processo burocrático que, certamente, se
mostra muito mais estático e demorado, completamente divorciado do ritmo dos tempos e da evolução
tecnocientífica.
Por
outro lado, o avanço da ciência e da tecnologia não pode ser contido por meros
preconceitos sociais ou religiosos, no mais das vezes tendo como suporte
grandes interesses sociais. Muito menos pode invadir a esfera da dignidade e da
vida, que se encontra protegida pela Lei Maior e é referido em inúmeras
legislações.
Desbordando,
também, dos limites geográficos, num momento existencial em que a globalização
traz à evidência a universalidade do existir, torna-se notório que a bioética
também não pode deixar de lançar um cuidadoso e profundo olhar, mesmo que
respeitando a diversidade cultural que defende razões e determina condutas,
sobre práticas que parecem afrontar à própria evolução da vida, como a
mutilação genital feminina, a própria pena de morte, ou o decepamento de
órgãos, práticas, enfim, que, como
verdadeiras obscenidades, parecem ferir de morte os mais comezinhos princípios
de direito.
É
preciso que estejamos atentos pois há questões inadiáveis reclamando concreção
programática. Há princípios inabaláveis que estão sendo confrontados com incisivas inovações, com repercussão nos
âmbitos administrativo, legislativo e judicial.
E
é nessa seara que se impõe o instigante desafio de nos enveredarmos por esse
corte transversal do BIODIREITO,
de molde a serem consolidadas urgentes balizas legais a estabelecerem um liame entre
as tecnociências e as responsabilidades e garantias dos seres vivos e do ecossistema.
E
todos somos responsáveis, pois, como refletiu John Donne, poeta inglês do
século XVI, destacado no livro de Ernest Hemingway “Por quem os sinos
dobram” “A morte de qualquer homem me
diminui, porque eu sou parte da humanidade.; e por isso, nunca procure saber
por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti.”
Linda
Brandão Dias
03/10/2012
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