JUSTIÇA – UMA REFLEXÃO PARA NOSSO TEMPO
Nos tempos medievais, a morte era o
destino inevitável para todos os que não se alinhavam com os dogmas impostos
pela Igreja Católica. Naquela época, o
paradigma religioso que norteava toda a sociedade transformou a Europa num
abismo trevoso que deixou um saldo absurdo de vítima de torturas e
perseguições. E, o que é pior, essas torturas lotavam as praças de espectadores
de todas as partes do reino que vibravam com aquele macabro espetáculo.
Havia um terrorismo consciencial, um
combate explícito a qualquer ideia inovadora que pudesse fomentar, de alguma
forma, a dúvida religiosa, ou viesse a enfraquecer a autoridade papal. E quem
ousasse violar a crença dominante era vigiado, perseguido e condenado por um
Tribunal eclesiástico constituído para defender a fé católica.
A partir dessa mentalidade, desencadeou-se
uma forte vigilância não só sobre o
comportamento moral dos fiéis, mas também uma censura de toda a produção
cultural e uma severa restrição a toda manifestação de pensamento crítico e
qualquer inovação científica. E o preço pago por isso foi muito alto.
Diante desse grotesco cenário, um
grupo de pessoas conspirou em meados do século XVI por um novo paradigma. Os
filósofos iluministas quiseram substituir a ideia de salvação pela felicidade
na terra. Assim, a providência divina
foi substituída pela certeza científica e pela ideologia da prevalência do
material.
Transcendência, espiritualidade e
religiosidade foram equivocadamente preteridas, em prol das ideias de progresso
material e do conhecimento racional, que passaram a ser o centro das atenções
da sociedade humana.
Nessa senda, surgiram os filósofos
conhecidos como Iluministas. Galileu, considerado o pai da física moderna, Francis
Bacon, que argumentou que a ciência deve restabelecer o império do homem sobre
as coisas, René Descartes, com seu “penso, logo existo” e sua sugestão de fusão
da álgebra com a geometria que o tornaram figura-chave na revolução científica,
e, dentre outros, Isaac Newton, que fez a síntese da matematização de Galileu,
do empirismo de Bacon e do racionalismo de Descartes.
Mas aquilo que era para ser um
movimento renovador, histórico, dialético, abarcou de forma igualmente radical todos
que se sentiam sufocados, e acabou por gerar
uma outra esclerose coletiva em sentido oposto: Toda a essência de
transcendência, toda a dimensão essencial de onde jorram os princípios da ética
foi reprimida em nome da ciência e do
mundo materialista.
Nascia o apego cego ao progresso
tecnocientífico, sem a contrapartida da transcendência, da espiritualidade, do
divino. E um novo tipo de trevas se abateu sobre os tempos modernos. A
preponderância da matéria sobre o espírito.
E, hoje, a alienação e a desumanização se alastram pelos diversos campos
da sociedade, contaminando a tudo e a todos.
Vivemos tempos frios, comportamentos desleais e de pura indiferença diante do
essencial.
Nesse cenário de busca desenfreada
pelas aparências e de desrespeito ao outro, esse mesmo paradigma materialista e
frio alastrou-se pelo mundo profissional, contaminando todas as carreiras que
permeiam a sociedade, desembocando, inequivocamente, no Direito, que regula, de
forma tácita ou expressa, desde os seus primórdios, toda a vida em sociedade, e
que vive seus momentos de permanente instabilidade, norteado, igualmente, por parâmetros
sócio-histórico-culturais que refletem as tendências do mundo.
A partir da supervalorização do que
é material, do que é exterior, do que é aparente, os operadores do direito de
todas as esferas e matizes, mais especificamente os membros do Ministério
Público, os Juízes e os Desembargadores,
engalanaram-se com as capas da divindade, cobriram-se com os louros da
ostentação e passaram a brandir o cetro da verdade, como se de seu âmago brotasse, inquestionável, a
palavra final.
Julgando-se, a si mesmos, eternos
detentores do privilégio cognitivo, passaram a exercer um poder discricionário
judicial, um “decisionismo” ostensivo, que sufoca, inevitavelmente, muitas
vezes, a democracia da soberania popular exercida pelas leis, que devem ser
interpretadas sem contrariedade à ideologia legal.
Podemos dizer que, hoje, a sociedade
clama por membros do Ministério Público e Magistrados que não detenham somente
conhecimento teórico, ou técnico, mas que possuam, mais que isso, uma
consciência social capaz de humanizar a justiça.
A sociedade clama por operadores do Direito que cedam espaço a
uma Justiça concreta, verdadeira, efetivamente justa, mais próxima dos
jurisdicionados, e não uma Justiça distante, midiática, acomodada em padrões
repetidos de “verdades” pessoais inquestionáveis.
É direito constitucional do cidadão,
em nossa legislação pátria, o respeito integral aos direitos fundamentais da
pessoa, e, dentre eles, o direito de acesso ao Judiciário, sendo totalmente
inaceitáveis algumas práticas que vêm contrariando o Estado Democrático de
Direito.
O cidadão necessita acesso confiável
ao Judiciário, e isso demanda um novo modelo de Juiz, mais preocupado com a
realidade social e com a aplicação serena dos preceitos constitucionais. O
cidadão precisa de membros do Ministério Público, Juízes e Desembargadores que
não se comportem como se fossem semideuses, que não se suponham acima do bem e
do mal, não se pensem invencíveis ou inquestionáveis, e que, sobretudo, possam
olhar com isenção e sem os holofotes da mídia, a situação que lhes for posta à
análise.
A preparação dos membros do
Ministério Público e dos Magistrados, hoje, deveria passar por séria avaliação
psicológica, psicotécnica e vocacional, pois só exerce bem seu cargo quem tem
amor por ele, quem tem equilíbrio emocional, quem tem, enfim, vocação para
exercê-lo. Só quem ama o que faz, é capaz de cumprir com magnitude, verdade
e dedicação sua missão.
Não bastam conhecimentos teóricos. O
Juiz deve ter conhecimentos culturais, sociológicos, econômicos e políticos,
para que suas decisões não se distanciem da realidade social.
O que se vê, atualmente, são Membros
do Ministério Público e Magistrados de todas as instâncias, com conhecimentos
que os faz suporem-se quase divinos, mas completamente destituídos de
serenidade, equilíbrio, humildade, e, acima de tudo, sem um real senso de
responsabilidade com a verdadeira Justiça.
Ser justo não significa aplicar a
letra fria da lei, de maneira quase mecânica, sem adequá-la realmente ao
contexto. Porque está sempre rondando e
à espreita o perigo do hábito. daqueles entendimentos coagulados pela pressa e
pela preguiça de pensar. Porque há o perigo da indiferença marcante que se
instala na alma e no coração dos
profissionais que exercem sua sublime missão descompromissados com o ser humano
.
Um processo é muito mais do que um
monte de folhinhas brancas ou pardas , dentro de capinhas azuis, brancas,
amarelas ou rosas. Um processo são
pessoas que estão sofrendo, buscando e, muitas vezes, ainda confiando nessa
Justiça já tão desacreditada, tão desvirtuada pelas pressões políticas, da
mídia, ou pelas demagogias baratas e aparatos que, em última instância, só têm
a intenção de mostrar aparências. Aparência de legalidade. Aparência de
rapidez. Aparência de eficácia. Aparência fundada em números que enganam.
Afinal, muitos cidadãos ainda buscam profissionais humanos
e justos, e não poderão viver como o
filósofo Diógenes, que se tornou mendigo e durante os dias perambulava pelas
ruas com uma lanterna acesa, procurando um homem que vivesse segundo a
sua essência, que vivesse sua vida
superando as exterioridades exigidas pelas convenções sociais como comportamento,
dinheiro, luxo ou conforto, e que tivesse, enfim, encontrado a sua verdadeira natureza, que vivesse de acordo com ela e que fosse feliz.
Mas é certo, também, que os
paradigmas radicais do passado já não atendem aos graves desafios que encontramos
pela frente, de forma que vivemos, hoje,
uma verdadeira crise de tempos confusos, caracterizada pelo desmoronar de
velhos padrões e certezas, o que nos sinaliza para uma mudança que esperamos
para melhor.
Felizmente, porém, embora como grãos de areia num deserto,
podemos dizer que ainda se encontram Membros do Ministério Público e Magistrados
com filosofia e valores norteados pela verdadeira vocação, e que desempenham
sua missão com compromisso social, respeito ao próximo e com a necessária
humildade que só possuem os que são grandes de espírito. Embora os tenhamos que
buscar, muitas vezes, de lanternas acesas....
LINDA BRANDÃO DIAS
21/03/2013
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