Desigualdade x violência
Da relação direta entre ter de limpar seu banheiro você mesmo e poder
abrir sem medo um Mac Book no ônibus
A sociedade holandesa
tem dois pilares muito claros: liberdade de expressão e igualdade. Claro,
quando a teoria entra em prática, vários problemas acontecem, e há censura, e
há desigualdade, em alguma medida, mas esses ideais servem como norte na
bússola social holandesa.
Um porteiro aqui na
Holanda não se acha inferior a um gerente. Um instalador de cortinas tem tanto
valor quanto um professor doutor. Todos trabalham, levam suas vidas, e uma
profissão é tão digna quanto outra. Fora do expediente, nada impede de
sentarem-se todos no mesmo bar e tomarem suas Heinekens juntos. Ninguém olha
pra baixo e ninguém olha por cima. A profissão não define o valor da pessoa –
trabalho honesto e duro é trabalho honesto e duro, seja cavando fossas na rua,
seja digitando numa planilha em um escritório com ar condicionado. Um precisa
do outro e todos dependem de todos. Claro que profissões mais especializadas
pagam mais. A questão não é essa. A questão é “você ganhar mais porque tem uma
profissão especializada não te torna melhor que ninguém”.
Profissões
especializadas pagam mais, mas não muito mais. Igualdade social significa menor
distância social: todos se encontram no meio. Não há muito baixo, mas também
não há muito alto. Um lixeiro não ganha muito menos do que um analista de
sistemas. O salário mínimo é de 1300 euros/mês. Um bom salário de profissão
especializada, é uns 3500, 4000 euros/mês. E ganhar mais do que alguém não
torna o alguém teu subalterno: o porteiro não toma ordens de você só porque
você é gerente de RH. Aliás, ordens são muito mal vistas. Chegar dando ordens
abreviará seu comando. Todos ali estão em um time, do qual você faz parte tanto
quanto os outros (mesmo que seu trabalho dentro do time seja de tomar
decisões).
Esses conceitos são
basicamente inversos aos conceitos da sociedade brasileira, fundada na profunda
desigualdade. Entre brasileiros que aqui vêm para trabalhar e morar é comum –
há exceções - estranharem serem olhados no nível dos olhos por todos – chefe
não te olha de cima, o garçom não te olha de baixo. Quando dão ordens ou
ignoram socialmente quem tem profissão menos especializadas do que a sua, ficam
confusos ao encontrar de volta hostilidade em vez de subserviência. Ficam ainda
mais confusos quando o chefe não dá ordens – o que fazer, agora?
Os salários pagos para
profissão especializada no Brasil conseguem tranquilamente contratar ao menos
uma faxineira diarista, quando não uma empregada full time. Os salários pagos à
mesma profissão aqui não são suficientes pra esse luxo, e é preciso limpar o
banheiro sem ajuda – e mesmo que pague (bem mais do que pagaria no Brasil a) um
ajudante, ele não ficará o dia todo a te seguir limpando cada poeirinha sua,
servindo cafezinho. Eles vêm, dão uma ajeitada e vão-se a cuidar de suas vidas
fora do trabalho, tanto quanto você. De repente, a ficha do que realmente
significa igualdade cai: todos se encontram no meio, e pra quem
estava no Brasil na parte de cima, encontrar-se no meio quer dizer descer de um
pedestal que julgavam direito inquestionável (seja porque “estudaram mais” ou
“meu pai trabalhou duro e saiu do nada” ou qualquer outra justificativa pra
desigualdade).
Porém, a igualdade
social holandesa tem um outro efeito que é muito atraente pra quem vem da
sociedade profundamente desigual do Brasil: a relativa segurança. É
inquestionável que a sociedade holandesa é menos violenta do que a brasileira.
Claro que aqui há violência – pessoas são assassinadas, há roubos. Estou
fazendo uma comparação, e menos violenta não quer dizer “não violenta”.
O curioso é que aqueles
brasileiros que queixam-se amargamente de limpar o próprio banheiro, elogiam
incansavelmente a possibilidade de andar à noite sem medo pelas ruas, sem
enxergar a relação entre as duas coisas. Violência social não é fruto de
pobreza. Violência social é fruto de desigualdade social. A sociedade holandesa
é relativamente pacífica não porque é rica, não porque é “primeiro mundo”, não
porque os holandeses tenham alguma superioridade moral, cultural ou genética
sobre os brasileiros, mas porque a sociedade deles tem pouca desigualdade. Há
uma relação direta entre a classe média holandesa limpar seu próprio banheiro e
poder abrir um Mac Book de 1400 euros no ônibus sem medo.
Eu, pessoalmente, acho
excelente os dois efeitos. Primeiro porque acredito firmemente que a profissão
de alguém não têm qualquer relação com o valor pessoal. O fato de ter “estudado
mais”, ter doutorado, ou gerenciar uma equipe não te torna pessoalmente melhor
que ninguém, sinto muito. Não enxergo a superioridade moral de um trabalho honesto
sobre outro, não importa qual seja. Por trabalho honesto não quero dizer
“dentro da lei” - não considero honesto matar, roubar, espalhar veneno,
explorar ingenuidade alheia, espalhar ódio e mentira, não me importa se seja
legalizado ou não. O quanto você estudou pode te dar direito a um salário maior
– mas não te torna superior a quem não tenha estudado (por opção, ou por falta
dela). Quem seu paí é ou foi não quer dizer nada sobre quem você é. E nada, meu
amigo, nada te dá o direito de ser babaca. Um doutor que é arrogante e
desonesto tem menos valor do que qualquer garçom que trata direito as pessoas e
não trapaceia ninguém. Profissão não tem relação com valor pessoal.
UPDATE: Muita gente tem
lido este post como uma idealização da Holanda como um lugar paradisíaco. Nada
mais longe da verdade. A Holanda não é nenhum paraíso e tem diversos problemas,
muitos dos quais eu sinto na pele diariamente. O que pretendo fazer aqui é
dizer duas coisas: a origem da violência no Brasil é a desigualdade social e 2,
apesar da violência que gera, muita gente gosta dessa desigualdade e fica
infeliz quando ela diminui, porque dela se beneficia e não enxerga a ligação
desigualdade-violência. Por fim: esse post não é sobre a Holanda. A Holanda
estar aqui é casual. Esse post é sobre o Brasil, minha pátria mãe.
(Texto extraído do blog do brasileiro Daniel Duclos,
que mora na Holanda)
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