Mulher terá nomes dos pais biológico e adotivo na
certidão de nascimento
O juiz de Direito Clicério
Bezerra e Silva, da 1º vara da Família e Registro Civil do Recife/PE, autorizou
a uma mulher adotada a retificação da certidão de nascimento, para que conste o
nome do pai biológico. A autora da ação acionou o Judiciário para conseguir
acrescentar no documento o nome do pai biológico, com quem sempre conviveu, e o
dos avós paternos biológicos. O processo corre em segredo de justiça.
Natural de SP, a autora foi adotada
aos três meses de idade sem o consentimento e conhecimento do pai
biológico. Oficialmente, ela tem agora uma mãe, dois pais e seis avós,
sendo dois maternos e quatro paternos.
Multiparentalidade
O juiz de Direito ponderou, ao
proferir sua decisão, que não há "como não reconhecer judicialmente a
paternidade daquele que foi pai sem obrigação legal de sê-lo. Por amor,
guardou, educou e deu sustento a sua filha."
"No caso dos autos, o
pleno exercício da parentalidade, revelado pelo cuidar, prover, educar, que é
inerente ao próprio ser humano, foi duplamente exercido pelo pai adotivo e pelo
genitor, que, lado a lado, acompanharam o desenvolvimento da autora",
afirmou o magistrado.
De acordo com o juiz Clicério, a
verdadeira paternidade se consolida pelas relações de carinho, acolhimento e
confiança. "Essa identidade há de ser protegida pelo direito",
sustentou, ao lembrar que ambos os pais na trajetória de vida da autora
subscrevem termo expresso de anuência ao reclame da filha "tão somente para
traçar contornos formais ao que no coração já era uma evidência".
Na sentença, proferida no dia
1º/10, o magistrado Clicério Bezerra também destacou trecho do
artigo Filiações Plurais,
do desembargador do TJ/PE Jones Figueiredo: "Parentalidade multípla, em
todos os ditames é espiritual, antes de jurídica, no melhor sentido canônico,
como a de José, marido de Maria, que teve como filho socioafetivo o próprio
filho de Deus. Por isso mesmo, Pai é aquele que se a(pai)xona".
Filiações plurais
Cada família tem seu direito de
família, diria Carbonnier (“a chaque famille son droit”), indicando que
o direito de família não pode ser feito por normas fechadas, exigindo-se que
doutrina e jurisprudência se adicionem em visão aberta que enxergue a família
em seu “locus” de realizações pessoais e digna, portanto, de compreensões
metajurídicas.
Assim, parentalidades são
diversas, consolidadas pelo sangue (bio), pela consanguinidade com afeto
(bioafetiva) e pelo trato, fama e nome, como a posse de estado de filho
(socioafetiva); todas elas importando seus vínculos, o reconhecimento jurídico
das situações fáticas e legais e, sobremodo, atendidas as relações entre pais e
filhos como fenômenos parentais que transcendem os normativos atuais por
existirem, antes de mais, como verdades concretas de realidade vividas e
fundadas no valor afeto como bem jurídico.
Bem é certo diferentes a “verdade
do sangue” e a “verdade do coração”, que são verdades que funcionalizam a
filiação, conforme Marie-Thèrese Meldeurs em seu pioneiro artigo sobre os novos
fundamentos do conceito de filiação (1972).
Impende, daí, considerar
distintas (i) as filiações apenas biológicas, (ii) as filiações bioafetivas
concomitantes (vínculo biológico + afetividade) e (iii) as filiações
socioafetivas ocorrentes, estas últimas predominantes ou não. As primeiras
estão na mera genitura, sem a função paterna exercida. Genitor é apenas quem
procria. Pai é algo que acrescenta nas relações de vida.
Sucede, então, cogitar sobre a
multiparentalidade quando é de admitir-se, em situações pontuais, coexistentes
a parentalidade socioafetiva e a biológica (filiações plurais). Cuida-se da
teoria tridimensional da filiação, em seus critérios bio-afeto-ontológicos,
reconhecidos presentes a um só tempo.
A lei não oferece conceitos
jurídicos de paternidade/maternidade, sequer constrói os seus estatutos
próprios. Mas ao tratar da parentalidade, cuida defini-la em seu amplo
espectro, dispondo o artigo 1.593 do Código Civil que “o parentesco é natural ou civil, conforme
resulte de consangüinidade ou outra origem”.
Pois bem. A parentalidade socioafetiva
como modalidade de parentesco civil, sob a cláusula “outra origem”,
adicionada pelo novo Código (para além dos casos de adoção) não é apenas
criação jurídica da lei. Antes, recepciona a lei as situações fáticas e
variadas que plasmam espécies de parentalidades, como representações
suficientes de pais e filhos, que assumem-se, recíproca e conscientemente, por
afeição, como se pais e filhos fossem, inexistente o “jus sanguinis”. Nessa
toada, tais parentalidades consolidadas são reconhecidas e merecem amparo
jurídico.
De fato, uma nova ordem jurídica
coloca-se ao encontro das situações parentais mais diversas, onde a família
apresenta-se como “a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram
aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa.”
Esse conceito de família, o primeiro que se conhece ofertado pelo ordenamento
jurídico nacional é o contido na lei 11.340/06 (artigo 5º, II) e no ponto, faz acrescentar o
elemento da “vontade expressa” como novo liame familiar-parental, no plano
civil. Esse significante tem sua precisão cirúrgica, definindo outros vínculos
que não os meramente biológicos.
Sobrevém situações de fato que,
inexoravelmente, estão a reclamar a multiparentalidade, em seus devidos efeitos
jurídicos, à luz dos dispositivos legais existentes (artigo 1.593, CC;
lei 11.340, artigo 5º, II), conforme as variantes de cada situação
concreta. Vejamos hipóteses:
(i) A indução a erro daquele que
registra suposto filho, sob a crença de ser o pai biológico por si só não pode
macular o vinculo socioafetivo do pai registral, consolidado ao longo do tempo;
a tanto permiti-lo defende-lo frente ao pai biológico quando este ciente da
condição que lhe tenha sido até então sonegada;
(ii) Mesmo na ausência de
ascendência genética, o registro realizado de forma consciente, consolida a
filiação socioafetiva. Essa circunstância opera-se quando o companheiro da mãe
solteira registra o filho trazido por ela. Essa relação de fato deve ser
reconhecida e amparada juridicamente. “Isso porque a parentalidade que nasce de
uma decisão espontânea, deve ter guarida no Direito de Família” (STJ - 3ª
turma, RESp. 1.259.460-SP. Rel.Min. Nancy Andrighi, j. em 19/6/12);
(iii) Filiações ectogenéticas, na
espécie dos filhos havidos por inseminação artificial heteróloga, onde por
ficção legal é genitor o marido da mulher (artigo 1.597, inciso V; do Código
Civil), configuram este também como pai socioafetivo. Ao pai biológico (dador
do esperma), a multiparentalidade pode ocorrer quando em face do reconhecimento
da identidade genética por direito personalíssimo do filho, ocorram relações
parentais também afetivas.
(iv) Posse errada de filho (troca
de recém-nascidos), apurada ao depois, onde a filiação socioafetiva consolidada
não cede e não haverá de prejudicar a biológica.
A família multiparental, formada
por filiações plurais, já existe na jurisdição prestada. São significativos os
julgados:
(i) 11/2011: a juíza Deisy
Cristhian Lorena de Oliveira Ferraz, da 1ª Vara Cível da Comarca de Ariquemes,
em Rondônia, declarou a dupla paternidade admitindo em registro o pai biológico
que passou a se relacionar com a filha adolescente, mantendo o do pai registral
e socioafetivo (Proc. nº 0012530-95.2010.8.22.0002),
(ii) 10/2012: Acórdão da 1ªCâmara
de Direito Privado do Tribunal de Justiça, onde Relator o des. Alcides Leopoldo
e Silva Jr., determinou o registro de um jovem com os nomes de seu pai
biológico, de sua mãe biológica e de sua madrasta, como mãe socioafetiva (AC
0006422-26.2011.8.26.0286; DJESP 11/10/2012).
(iii) 08/2013: decisão da juíza
Carine Labres, da Comarca de São Francisco de Assis (RS) admitiu pedido da
madrasta e das crianças enteadas, em ação declaratória de maternidade, sem
excluir o nome da mãe biológica do registro.
Bem de ver dos julgados que a
multiparentalidade tem sido admitida, para todos os fins legais, podendo ser
concomitante ou sucessiva, mas em todos os casos voluntária e não imposta.
Lado outro, a 4ª turma do STJ
definiu no voto do ministro relator Luís Felipe Salomão que a filiação
socioafetiva desenvolvida com os pais registrais não afasta os direitos do
filho resultantes da filiação biológica: certo que “a paternidade biológica
gera, necessariamente, uma responsabilidade não evanescente”.
Parentalidade múltipla, em todos
os ditames, é espiritual, antes de jurídica, no melhor sentido canônico, como a
de José, marido de Maria, que teve como filho socioafetivo o próprio filho de
Deus. Por isso mesmo, Pai é aquele que se a(pai)xona.
Disso é feita a
multiparentalidade, pela fortuna de espirito de quem possui, por dádiva de
vida, mais de um pai ou uma mãe. Direitos sucessórios de ambos? Sim, porque
essa fortuna será sempre menor que aquela. Afinal, quem herda do procriador
(herança de sangue, sem afeto), por lógica jurídica pode cumular heranças dos
pais, cujos vínculos maiores da bioafeição e socioafeição o tornaram mais
afortunado.
Adoção multiparental
Agora, pela primeira vez no país,
uma decisão judicial admite acrescentar ao registro de nascimento de menor
adotado, o nome de seu genitor e de seus avós paternos, mantendo-se a
paternidade adotiva e registral, com o acréscimo do patronímico do pai biológico.
A decisão foi proferida pelo juiz
de Direito Clicério Bezerra e Silva, da 1ª vara de Família do Recife, em Ação
de Investigação de Paternidade em que a filha adotada, em expressão de sua
identidade genética, com anuência expressa dos pais adotivos e do próprio
investigado, requereu o reconhecimento do vinculo biológico para os fins de
admissão da multiparentalidade existente, quando, predominantemente, as
relações de afetividade reúnem todos. (Processo : 0034634-20.2013.8.17.0001, j.
em 1/10/13).
Pois bem. É consabido que o
instituto da adoção que atribuiu a situação de filho ao adotado (art. 1.626, CC),
constitui um vínculo parental civil, na forma do que dispõe o art. 1.593 do CC,
por se tratar de parentalidade decorrente de outra origem que não a natural
resultante da consangüinidade. Ocorre que, em seus efeitos jurídicos, carrega
consigo, ope legis, a ruptura instante de qualquer vínculo com os pais e
os parentes consanguíneos (art. 1.626, 2ª parte, CC).
Mais precisamente, vínculos
anteriores são desfeitos, por força da lei, rompendo as relações da
parentalidade natural, vindo estas ser substituídas pelas do afeto, afinal
configuradas no novo vínculo oferecido pela adoção. No caso, serão aqueles
vínculos findos, quando preexistentes, na filiação biológica e registral.
Diferentemente, aliás, dos casos de reprodução assistida heteróloga, quando
sequer se faz estabelecido vinculo parental entre a criança concepta e o doador
do material fecundante (art. 1.597, V, CC).
E quando inexiste filiação
registral, porquanto desconhecido o pai, por certo tempo, ou no ponto,
desconhecendo o pai a existência do filho, a tanto por isso mesmo não
expressando sua concordância com a adoção (art. 1.621 e § 1º, CC)?
Nessa hipótese, o vínculo
biológico preexistente, sem dispor de registro, cede inexoravelmente frente à
adoção, quando os fatos da vida aproximem o pai biológico do filho que veio,
com sua insciência, ser adotado?
Hipótese tal reclama, às
expressas, configurar-se uma adoção multiparental, onde, diante das
circunstâncias dos fatos, a afetividade construída pela adoção poderá ser
somada, ao depois, à afetividade resultante de iniludível vínculo biológico que
se faça mais presente na convivência entre aquele pai biológico e o filho então
inserido em família substitutiva (pela adoção).
É exatamente o caso julgado, a
servir, com a maior relevância jurídica, de “leading case”.
A decisão judicial confortou-se,
inegavelmente, em consolidar no plano jurídico a dupla paternidade fática, como
admitiu o magistrado, quando incontroversos os fatos de que a criança nunca
deixara de manter laços de convivência com aquele que indicou depois ser seu
pai, a tanto a reconhecendo como filha, em mesmo liame de afeto, para além de
um mero vínculo biológico.
Assinalou o juiz decisor que “o
caso revelado pelos meandros destes autos, diz respeito à possibilidade da
multiparentalidade por meio da cancela judicial, circunstância a particularizar
e impingir relativo ineditismo ao caso em julgamento, não obstante existirem
pontuais decisões em demandas com certa similitude.” No ponto, apontou que os
fatos reclamam a devida tutela estatal à nova formatação de entidade familiar,
sustentando que com o advento da CF, “restou superado o reconhecimento tão somente
ligado aos limites formais em matéria de prova da parentalidade, passando-se a
admitir um pensamento pluralista nas formas de reconhecimento da filiação.”
Em avaliação da prova, exaltou o
magistrado que, com exatidão fática, o convívio da autora “permeava ambas as
famílias em momentos de lazer e evidentes demonstrações de afetividade estreita
com os pais, inclusive juntos aos seus irmãos, filhos do Sr. G.” (o pai
biológico).
De fato. É sinalagmática a sua
assertiva que “a verdadeira paternidade se consolida por meio das relações de
carinho, acolhimento, confiança, de um bom exemplo dado, momento em que os
filhos encontram nos pais a figura de referência em suas vidas. Essa identidade
há de ser protegida pelo direito.”
A jurisprudência mais moderna vem
construindo avanços significativos, a partir de algumas premissas de base
essenciais. Vejamos:
(i) “Se é o próprio filho quem
busca o reconhecimento do vínculo biológico com outrem, porque durante toda a
sua vida foi induzido a acreditar em uma verdade que lhe foi imposta por
aqueles que o registraram, não é razoável que se lhe imponha a prevalência da
paternidade socioafetiva, a fim de impedir sua pretensão. O reconhecimento do
estado de filiação constitui direito personalíssimo, indisponível e imprescritível,
que pode ser exercitado, portanto, sem qualquer restrição, em face dos pais ou
seus herdeiros.” (STJ – 3ª turma, REsp. 1274240, Rel. Min. Nancy Andrigui, j.
em 8/10/13);
(ii) “(...) a pretensão voltada à
impugnação da paternidade não pode prosperar, quando fundada apenas na origem
genética, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva. (STJ – 4ª
turma, REsp 1115428-SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, j. em 27/8/13);
Nessas latitudes, dois postulados
se apresentam imediatos e incólumes:
(i) a prevalência da
paternidade/maternidade socioafetiva frente à biológica ou vice-versa, terá, em
quaisquer dos casos, como principal fundamento o interesse do próprio menor,
e/ou os da consolidação e estabilidade do grupo familiar irretocável, sempre na
diretiva da dignidade da pessoa: (ii) a parentalidade múltipla guarda
conformidade com os fatos da vida, para integrar-se em inexorável liame com o
valor do afeto ao contexto personalístico da pessoa, nas relações de filiação
que possua, juridicamente consideradas e reconhecidas.
Bem de ver que em julgado também
paradigma, admitiu-se, muito além dos limites da adoção conjunta apenas
destinada a duas pessoas que forem marido e mulher ou conviventes (art. 1.622,
CC), a possibilidade de ser deferido pedido de adoção conjunta a dois irmãos,
em face do infante. (STJ – 3ª Turma, REsp. nº 1217415-RS, j. em 19/6/12), com
interpretação ampliativa do art. 42, parágrafo 2º do Estatuto da Criança e do
Adolescente (lei 8.069/90).
Logo, resta concluir que em sendo
a multiparentalidade um fenômeno social-familiar de consenso, entre todos os
protagonistas do afeto, por opção que dignifica a todos, a adoção
multiparental, nessa mesma toada, deve ser considerada como repercussão natural
dos fatos da vida. La vita è bella!!! 7
(texto de autoria de Jones
Figueirêdo Alves, desembargador decano
do TJ/PE, diretor nacional do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de
Família que coordena a Comissão de Magistratura de Família. Publicado no
Migalhas)
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